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terça-feira, 19 de outubro de 2021

O Melhor Lar para o que te Resta de Vida

 


O Melhor Lar para o que te Resta de Vida


    Chegar à terceira idade não é qualquer coisa, assim como não é a mesma coisa ser um idoso com 60, 70, 80, 90 e 100 anos em nosso país. E, talvez, em país algum. Não, não é qualquer coisa e nem a mesma coisa. Em um país onde já morreram mais de 600 mil pessoas, num país onde dentre essas mortes, mais de 74% foram idosos, os que vemos pelas ruas deste nosso imenso e desigual Brasil são os guerreiros. Guerreiros, sim, pois o Brasil não é um país para pouca luta. É um país para muita luta! E quando a expectativa média de vida é de cerca de 76 anos de idade, passar disso não é para muitos, não.
    E o idoso, a idosa, que chegou aos 90 anos, então? Se for um idoso, uma idosa das camadas sociais classificadas como E, D e C, nossa, trata-se de um herói, de uma heroína que merece estátua em praça pública e dignos de que lhe seja ofertado um dia de feriado nacional! Já pararam para pensar que para chegar a mais de 90 anos a pessoa venceu o estrago que o esgotamento do trabalho destinado a pessoas com pouca instrução, e por mais de 40 anos, causou em seu corpo, em sua mente, em suas emoções?
    E se fizermos os cálculos, um idoso que tenha hoje 90 anos ou mais nasceu no século passado, para lá de 1931. Voltemos à história de nosso país para vermos quantas batalhas esses idosos, essas idosas venceram: a tuberculose no Brasil matava muita gente até meados do século XX; a varíola matou muitos até os anos 70; a gripe por H1N1, considerada a primeira epidemia do século XXI também levou muitas vidas e, agora, o Coronavírus. Vemos, então, que além da miséria e do esgotamento do trabalho, o idoso, a idosa com 90 anos ou mais passou por todas essas doenças. Passou por elas e as venceu! Esse idoso, essa idosa ainda passou pela escassez e pelo pavor que plainavam sobre o planeta durante toda a Segunda Grande Guerra e durante os tempos da Guerra Fria.
    Hoje, já para lá dos 70, 80, 90, principalmente quando alguma doença lhe retira a independência para as atividades diárias, esse idoso, essa idosa terá que lutar com o destino que lhes desenha a sua família. Sim, evidentemente que haverá aqueles de suas famílias que projetarão o futuro desse herói, dessa heroína em uma instituição para idosos. E os que pensam em instituição de idosos para o pai, para a mãe, avô, avó, bisavô, bisavó, tentarão convencer os contrários e farão propaganda das instituições de idosos para que pareçam um SPA, uma colônia de férias para o restante dos dias de vida. E dirão, tal qual o Diabo disse para Cristo ao conduzir-lhe a um monte muito alto, prometendo-lhe tudo o que os seus olhos alcançarem: o idoso, a idosa terá um quarto individual, mas se tu preferires, poderás deixar que divida o quarto com outros e, aí, ele, ela poderá ser divertir muito mais. E ainda, ele, ela terá seis refeições diárias; acompanhamento médico semanal, com assistência de equipe de enfermagem 24 horas! Olha que beleza! E terá lazer, divertimentos todos os dias e, ainda, fisioterapeuta para atividade física orientada à idade e às condições físicas! Veja só, teu paizinho, tua mãezinha, teu avozinho, tua avozinha viverá o resto dos dias de suas vidas em um verdadeiro paraíso!
    O melhor de tudo, nesse paraíso aqui sobre a Terra, tu poderás visitar o teu velhinho amado, a tua velhinha amada quando quiseres (evidentemente, dentro do horário estipulado pela instituição. Mas isso é de praxe, não é?) Ah, mas quando desejares, é só combinar na administração e tu poderás ainda levar o teu idoso, a tua idosa para passear, ou para confraternizar com os familiares em tua casa!
    É a maravilha das maravilhas e tu não terás mais que te preocupares com hora de medicação, segurança no sono, hora do banho etc. etc. etc. Não encontrarás nem mesmo no Reino de Deus um lar melhor para o teu amado velhinho, para a tua tão querida velhinha.
    Após o Diabo defender a excelência de uma instituição para idosos e, seduzidos por tantos prós, vamos esquecer todos os contras. Vamos esquecer que o idoso, a idosa para quem tratamos o tão curto futuro que lhe resta, viveu por mais de 30, 40, 50 anos na residência onde se encontra. Vamos deixar para lá o fato de que nesse local, o idoso, a idosa teceu redes de afeto, de solidariedade, de companheirismo que se fazem presentes hoje, no dia a dia, a cada vez que ele, que ela chega ao portão, à calçada, que dá uma volta no local. Vamos ensurdecer ao que dizem ao idoso, à idosa, as paredes, os retratos, os móveis e cada canto da residência onde mora. Vamos fechar os olhos para o quanto essa rede de afeto e essas lembranças vivas se constituíram, e se constituem, em verdadeiro elixir da vida e que foi isso que conduziu o idoso, a idosa até a idade que chega hoje.
    Para quê memórias, para que a rede de afeto, para que o direito de receber quem quiser e a hora que quiser em sua residência, se esse idoso, se essa idosa poderá TER TUDO O QUE A SUA RENDA PUDER PAGAR dentro de um lar para idosos?

    Então, agora, olhe nos olhos do teu amado idoso, de tua tão amantíssima velhinha, esse velhinho, essa velhinha que pode ser o teu bisavô, a tua bisavó, ou o teu avô, a tua avó, ou mesmo o teu pai, a tua mãe. Olhe fundo nos olhos dele, olhe fundo nos olhos dela. Olhe no fundo, bem lá no fundo de seus olhos e me diga: qual é o melhor lar para a tua mãe, para o teu pai, para o teu avô, para a tua avó, para o teu bisavô, para a tua bisavó passar o restante dos dias de sua vida?
    E se você pode pagar um lar de idoso e garantir toda essa purpurina que a propaganda acena, o que te falta para garantir a melhor assistência ao teu idoso, à tua idosa, dentro da residência onde ela, onde ele viveu e que sempre forneceu o elixir que garantiu a ele, a ela, a longevidade?

Luzia Magalhães Cardoso
(Desenho de Couto Anibal)


A Justa Medida

 

A Justa Medida


    Filhos têm responsabilidades para com os seus pais? E se houver irmãos, irmãs, todos teriam a mesma responsabilidade? Haverá instrumento de aferição para se medir o que cada filha, cada filho precisa fazer por seu pai, por sua mãe? Qual seria a medida dos cuidados, dos deveres, da assistência a ser ofertada por cada um, por cada uma? Qual seria o critério da medida justa? 🤔

  
    Haverá equidade na assistência a ser dada pelos filhos, pelas filhas ao pai, à mãe? Haverá meio para se garantir que cada um faça a mesma parte, a mesma quantidade, a mesma medida que o outro? Ou será que o tamanho da assistência ofertada por cada filho, por cada filha aos seus pais é proporcional ao tamanho do afeto, do amor, da solidariedade e da compaixão que têm ao se depararem com as necessidades do pai, da mãe? 🤔

    Será que é humano perceber a necessidade do pai, da mãe, e não supri-la? Será que é digno ficar medindo o valor da assistência material necessária a ser ofertada aos pais? Será que é da condição do ser humano deixar toda a assistência presencial, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, apenas com uma pessoa? 🤔

    Não haveria uma grande dose de egoísmo em não participar do dia a dia dos cuidados dos pais? Não teria uma grande dose de sadismo quando ausente das tarefas diárias do cuidado, ainda se acha no direito de ditar regras, delegar novas tarefas, fazer críticas e cobranças e querer regular os gastos daquele que cuida diretamente do pai, da mãe? 🤔

    Quanto valeram aquelas tantas e tantas, e tantas, noites que a mãe, que o pai ficaram sem dormir velando o nosso sono, buscando meios de garantir as condições necessárias à nossa vida, saúde, educação, preocupados quando estávamos no trajeto de algum lugar para casa?

    Em que canto de nossa memória ficou aquela labuta diária de nosso pai, de nossa mãe, nas tarefas do lar, nas atividades para garantir o nosso pão de cada dia, no imenso sacrifício para nos propiciar o brinquedo de Natal, aquele sonhado vestido de princesa e a nossa festa de quinze anos, aquele anel de formatura?

   Onde estão as nossas lembranças da quantidade de solicitações de ajuda, de todo tipo que, já adultos, pedimos aos nossos pais? E, muitas vezes, nem morávamos na mesma cidade deles, mas nem a distância os impediram de ir aonde nós estávamos para nos ajudar. Em que local roto deixamos apagar as imagens dos cuidados de nossa mãe, de nosso pai aos nossos próprios filhos?

    E quando chega o tempo em que o pai, a mãe passa a necessitar de cuidados diários, passa a demandar por amparo para se locomover, quando passa a necessitar que o alimento seja levado à sua boca em cada hora da alimentação, e que o banho lhe seja dado, o que caberia a cada um dos filhos, das filhas?

Luzia M. Cardoso

quarta-feira, 17 de março de 2021

Renda Básica de Cidadania

 Renda Básica de Cidadania: origens e fundamentos

    Luzia M. Cardoso

     Mar/ 2021


Renda básica de cidadania? Auxílio Emergencial? Bolsa família? 

Reivindica-se o direito de existir ou reivindica-se, como ser humano, o direito ao uso e aos frutos do planeta?

Texto 01




I -  Origens e Fundamentos


    Aristóteles, em seus escritos sobre Política, já levantava reflexões acerca da necessidade de se entender e diferenciar o que deve ser participável e o que deve ser compartilhado em uma sociedade, de forma que determinar os critérios sobre o que seria participável e o que seria compartilhável também estava presente em suas reflexões. Segundo Aristóteles, o poder seria participável, bens e riquezas, partilháveis.

   Considerando o pensamento de Aristóteles em relação ao que deveria ser partilhado, pensando no momento atual, surgem questões sobre qual seria o critério justo de uma partilha:

1. O trabalho e o esforço individuais; 

2.    O acúmulo herdado em herança familiar; 

3.  O trabalho coletivo (a quantidade de riqueza socialmente produzida) e nessa, sob quais critérios: de forma igualitária ou, conforme as necessidades de cada um.


II - Quais as origens da discussão acerca da justiça social?


     Segundo Suplicy (2004), a ideia de justiça social e, em consequência, a ideia de renda mínima, já aparece em textos que fundamentam religiões diversas. 

  No Novo Testamento, na parábola do Proprietário, este, ao contratar trabalhadores,  estabelece, já com os primeiros contratados, um acordo sobre a pagamento. Contudo, o proprietário  segue contratando ao longo do dia. Ao final, na hora de pagar, ele dá o mesmo valor a todos os trabalhadores. Questionado, ele justifica que o valor que paga a todos foi o que foi acordado e que, independentemente do tempo ou da quantidade de trabalho de cada um, todos teriam “o direito de receber o suficiente para as necessidades de sua família.” ( P.45)

     Essa discussão também aparece na Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios, ao tratar da igualdade e justiça: “ O que colheu muito não teve demais, e o que colheu pouco não teve de menos.” (P.46)

     Em Atos dos Apóstolos, capítulo II, versículo 42 a 46, observam-se princípios de justiça social: “(...) Todos os que abraçavam a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiram o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um.(...)”. (P.47)

    No Alcorão, dentre as regras de comportamento, há  “(..) engloba tudo o quanto é necessário para uma vida humana virtuosa, sem nada supérfluo, sem nada que falte.” (P. 48)

     Textos budistas apresentam preocupações em relação à desigualdade social. Dalai Lama já afirmava a necessidade de se ofertar a todos “o suficiente para suprir suas necessidades básicas, e mais um pouco.” (P. 48)

    Algumas questões estão na base das discussões e das propostas da renda mínima e, consequentemente, da concepção de justiça social:

1 - O que se entende por justiça social?

a) A partilha igualitária de bens e riquezas? 

b) A partilha conforme as necessidades e potencialidades de cada um?

c) A oferta de mínimos suficientes para a sobrevivência?

2 - Quando se pensa em bens e riquezas a serem socialmente partilhados:

Que bens e que riquezas deverão ser partilhados? 

3 - O que se entende por necessidades sociais?

a) A falta de acesso aos recursos necessários para a subsistência?

b) A falta de acesso aos bens e serviços socialmente produzidos?


4 - Da partilha:

a) Quem deverá usufruir dessa partilha? Quais critérios?

b) Quais proporções desses bens cada pessoa deverá receber? Quais critérios utilizar?


III – A Primeira Proposta de Renda Mínima


   Thomas More, em seu livro Utopia, de 1516, aponta a “importância de se assegurar a todos o mínimo para uma sobrevivência digna” ao  descrever “uma cidade imaginária” onde “nada é privado, o que conta é o bem público” (P. 51)

     Dando voz à personagem Rafael Hitlodeu, em Utopia, More apresenta sua “proposta de renda para todos, de forma que tivessem um meio de sobrevivência”, entendendo que dessa forma também os crimes de roubo diminuíram. (P. 52)

     Partindo das ideias de Thomas More, Juan Luís Vivès apresenta a que seria a primeira proposta de renda mínima, em 1526, em De sebventione pauperum sive de humanis necessitabus. Antes, em 1525, foi implementada uma forma de assistência municipal aos pobres em Pires, Bélgica. (P. 53) Contudo, a obra de Vivès influenciou modelos de assistência aos pobres nos países europeus, influência essa presente nas Leis de Assistência aos Pobres. (P. 54).


IV - Das Leis dos Pobres


    Quando se retorna aos antecedentes históricos, à primeira lei que trata diretamente da assistência aos pobres, a Lei de Speenhamland, de 1795, a sobrevivência das camadas populares era garantida não somente com o trabalho remunerado, mas também com a exploração agrícola das terras comunitárias, tanto plantando quanto com o extrativismo florestal. Com os "enclosures", essas terras são suprimidas da população. Apropriadas, essas terras se  tornam propriedade privada. 

  Esse ato contribuiu para aumentar o empobrecimento, visto que as camadas populares já vinham sofrendo com a escassez, depois, com os impactos das primeiras máquinas sobre o trabalho artesanal, em seguida, com a introdução das novas máquinas e com o consequente desemprego causado pela dificuldade das pequenas fábricas concorrerem com a grande indústria. 

     Diante dessa realidade, na região de Berkshire, situada no sudoeste da Inglaterra, em 1795, 

   “Os juízes de Speenhamland decidem  destinar um complemento de recursos a esses pobres, até atingir um mínimo vital. Essa iniciativa ganha rapidamente todas as vilas, até a sua abolição em 1834.” (P. 68)

    Assim, aqueles juízes podem ser considerados os precursores do que hoje se conhece como renda mínima. Ao analisar a possibilidade de a abolição da Lei de Speenhamland ter ocorrido devido ao seu fracasso, assim se posiciona Suplicy (2004):

       “Desse ponto de vista, o fracasso do Ato de Speenhamland não é de todo certo. Ao frear a imigração para as vilas industriais nascentes, ao manter os salários agrícolas mais fracos do que os da indústria, ao perpetuar uma atividade agrícola essencial, ele permitiu uma eclosão amaciada, na Inglaterra, do modo de produção industrial: até que a indústria triunfante tivesse tanta necessidade de mão-de-obra que a proteção instituída pela lei sobre os pobres se tornou um obstáculo ao mercado livre do trabalho, nutrido pelo livre movimento do campo para as vilas.” (P. 69)

     Mais à frente, outras leis de assistência aos pobres foram colocadas em vigor. Inicialmente, tratavam da permissão a idosos e deficientes de pedir esmolas às paróquias. Em seguida, autorizando que as instituições religiosas levantassem recursos para assistir aos pobres que, em contrapartida, ficariam disponíveis para trabalhar na região, em consequência, com restrição de movimentação. À frente, surgem as Casas de Trabalho, retratadas e criticadas na literatura da época, e também por economistas como Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus e também por Karl Marx. Cada um com suas diferentes propostas de sociedade.

   Já no contexto das revoluções industrial e burguesa, as críticas de Adam Smith, escocês que viveu no século XVIII, apontavam que a produção individual estava diretamente relacionada ao valor de sua recompensa, defendendo que os trabalhadores tivessem liberdade para escolher o trabalho que melhor lhe pagasse. Assim, a sua crítica às leis de assistência aos pobres  estava dirigida à restrição da liberdade de ir e vir, visto que a Lei de Assistência aos Pobres impunha que o assistido ficasse disponível para ser recrutado para trabalhar na região, mesmo que outra região demandasse mais por mão de obra. Em sua opinião, as restrições impostas por essa lei, bem como os subsídios por ela ofertados, contribuíam para aumentar as desigualdades e para diminuir o valor dos salários.

    Na mesma linha, no início do século XIX, as críticas de David Ricardo às leis de assistência aos pobres se davam ao fato de ele entender que tal assistência se opunha à liberdade do mercado e concorreria para o empobrecimento da nação, aumentando ainda mais a situação de miséria. Em sua concepção, sendo o financiamento da assistência aos pobres advindos de impostos, isso levaria ao empobrecimento dos proprietários e, consequentemente, ao aumento da situação de miséria dos mais pobres.

     As ideias de Adam Smith e David Ricardo, todavia, explícita que a riqueza das nações advinha do trabalho e não das propriedades, de forma que apresentaram propostas como o imposto de renda negativo (ou seja, quem não receber o valor de um piso determinado receberia uma complementação do Estado e aquele que obtivesse uma renda acima de um determinado teto pagaria uma taxa por sua riqueza).

     Thomas Malthus aponta outras preocupações com relação às leis de assistência aos pobres. Para ele, elas são prejudiciais à sociedade, visto criar uma dependência dos assistidos para com o Estado e, ao mesmo tempo, a uma acomodação dos mesmos. Mais ainda, ele acreditava que  levaria ao aumento das famílias pobres, tendendo a gerar mais filhos, levando ao “(...) aumento da população sem o necessário aumento da produção de alimentos (...)”. (P. 59) Malthus defendia que o valor a ser pago pelo trabalho deveria ser sempre valor suficiente para suprir as necessidades de cada família.

   Torna-se importante lembrar que, naquela época, as forças produtivas não estavam desenvolvidas como hoje, de forma que ainda havia a escassez devido aos fatores naturais que afetavam a produção e à sua distribuição. Essa situação de escassez e circulação dos produtos foram superadas com o avanço tecnológico.

     Torna-se importante, também, lembrar que, na história da humanidade, as propriedades foram frutos de dominação de povos e de apropriação privada de terras, por guerras ou invasões, impedindo o uso coletivo dos bens naturais. Quando alguns grupos, pela força, se tornaram possuidores, criaram uma massa de despossuídos dos recursos necessários para, com o seu trabalho, suprirem as suas próprias necessidades. 


V - Karl Marx sobre Leis os Pobres


    Marx, cujas produções se tornam públicas a partir de meados do século XIX, também partiu da reflexão acerca do valor do trabalho e das riquezas por ele produzidas para a sua crítica à sociedade burguesa, analisando o processo de apropriação privada do que antes era bem comum.

   As reflexões de Marx acerca da apropriação privada do bem comum já aparece em sua crítica à Lei sobre o roubo de Madeira, na Renânia, que assim entendia a coleta de gravetos e árvores caídas nas florestas e utilizadas pelos camponeses em fogão à lenha, confecção de artesanatos e de ferramentas. Essas florestas, antes de uso comum, passaram a ser consideradas de uso privado a partir da valorização da madeira. Já nesse texto, Marx aponta a relação entre a miséria e a apropriação privada de bens comuns.

    A crítica de Marx às leis de assistência aos pobres revelava que a esmola ofertada pelas Igrejas visavam complementar o salário que os indivíduos recebiam, que estava abaixo do mínimo necessário. Consequentemente, tais esmolas contribuíam para que os salários se mantivessem baixos, e rebaixando cada vez mais, não garantindo minimamente os meios de subsistência do grupo familiar. Formava-se uma classe de trabalhadores agrícolas indigentes, oprimidos pelos arrendatários e sujeitos aos regramentos impostos pelas paróquias. Assim concluía Marx em O Capital, “no capítulo sobre a Lei Geral de Acumulação Capitalista.” (P. 63)


VI - A defesa da Terra como bem comum da humanidade ou a defesa do direito à existência?


     Considerado um dos “maiores ideólogos das revoluções americana e francesa”, Thomas Paine, filósofo inglês do século XVIII (1737, Grã Bretanha-1808, EUA), elaborou muitos textos onde defendia o uso do planeta como direito inalienável de toda a raça humana, indicando, inclusive, que aqueles que cultivassem a terra ou construíssem alguma benfeitoria deveriam pagar um aluguel pelo uso privado e que tais aluguéis constituíssem um fundo a ser dividido e distribuído a todos, visto que se a terra estava sendo usada privadamente, a humanidade, sua herdeira natural, deveria ser recompensada pela perda coletiva daqueles recursos.

    Observa-se que Paine não vê o recurso como um “direito à existência” mas como direito de herança ao uso-fruto de um bem comum que passou a ser utilizado de forma privada. 

    A ideia de um recurso para garantir o “direito à existência” vem com os teóricos da Revolução Francesa.

    Condorcet, em Reflexões sobre o Comércio de Trigo, de 1776, afirmava a necessidade de se garantir a todos a subsistência. 

   Maximilian Robespierre, em 1782 defendeu:

“De todos os direitos, o primeiro é o de existir. Portanto, a primeira lei social é aquela que garante a todos os membros da sociedade os meios para existir; todas as demais leis estão subordinadas acessa lei social.” (P. 71).

      Em 1848, Joseph Charlie, em Bruxelas, fórmula uma proposta de renda básica, apresentando-a em seu livro “Solução do Problema Social ou Constituição Humanitária”. Joseph Charlie se fundamenta na ideia da igualdade de direito à propriedade da terra. Dessa forma, desse direito natural, adviria o direito à renda. Nesse sentido 

“(...) propôs que todo cidadão passaria a ter direito incondicional a um pagamento feito trimestralmente, e, mais tarde, mensalmente, de uma soma fixada anualmente por um conselho nacional representativo, tendo por base o valor total de aluguel de todas as propriedades. Esse esquema faria cessar a dominação do capital sobre o trabalho. (...).” (P. 73)

    Também John Stuart Mill, em 1848, em “Princípios de Economia Política” também defendia a garantia da subsistência em lei.


Em Síntese


     Desde tempos remotos, a questão em relação ao uso dos recursos naturais está em pauta, principalmente quando as sociedades revelam grupos em situação de miséria, de forma que a assistência aos pobres ou a partilha dos bens e riquezas já se fazia presente em textos que orientam religiões diversas.

     Com o processo das revoluções industriais e burguesas, a apropriação privada dos bens e riquezas por parte de poucos ficava muito evidente diante do processo de pauperização daquela classe que, já para muitos economistas, era identificada como a produtora dessas riquezas, contudo, ficando sem acesso a elas. 

    Embora as leis de assistência aos pobres viessem embaladas em um discurso humanitário e moral, com raras exceções, elas acabavam por contribuir para maior dominação, controle e restrição da liberdade de escolhas das camadas de trabalhadores que buscavam por tal assistência. De forma perversa, contribuíam para manter baixo o valor dos salários a serem pagos pelos proprietários/empregadores. Tais leis, também prendiam os assistidos a esses proprietários, forçando-os a se submeterem a qualquer valor e condições de trabalho.

     Contraditoriamente, em forma de exceção, outras experiências de execução da lei de assistência aos pobres revelavam a possibilidade de elas serem instrumentos de resistência das camadas trabalhadoras à exploração dos empregadores. 

     Analisando o processo histórico e o impacto das leis citadas sobre o trabalho, observa-se que ela atendia principalmente à economia, podendo ser considerada mais um subsídio aos proprietários empregadores do que aos próprios trabalhadores, visto que ela tanto fixava estes últimos à região, deixando-os recrutáveis, como também contribuía para manter os salários baixos. Contudo, havia a outra face dessa mesma moeda, visto que em algum momento, tal assistência funcionava como instrumento de resistência das camadas populares à intensificação do processo de exploração. Quando isso ocorria, as classes dominantes buscavam justificativas par restringir o acesso ou mesmo para abolir a lei.

   Destaco, aqui, um parágrafo do texto de Suplicy (2004:65) que considero fundamental para as reflexões acerca do direito à renda básica:

“ (...) o direito a uma renda mínima, especialmente na forma de uma renda básica incondicional, poderá ser um dos instrumentos fundamentais para promover a maior liberdade do trabalhador, sobretudo de seu poder de barganha, principalmente ao lhe permitir maior possibilidade de escolha diante de qualquer oferta de serviço.”

     Considerando o processo histórico, fica claro que o valor e as condições estabelecidas para o acesso à essa assistência ou contribuí para a submissão das classes trabalhadoras à tirania dos proprietários dos meios de produção ou viabiliza às classes trabalhadoras a resistirem e terem melhores condições para negociarem o valor de seu trabalho.

   A história também nos mostra a relação direta da apartação das classes trabalhadoras ao direito de usufruírem dos recursos do planeta, bem como a tendência de diminuir ou mesmo acabar com áreas agrícolas e florestais de uso comunitário, transformando tudo em propriedade privada. Esse processo é que é o principal determinante do empobrecimento e do aprofundamento da miséria.

Levanta-se uma questão para o direcionamento de uma proposta de renda Básica: reivindica-se o direito de viver ou reivindica-se, como ser humano, o direito ao uso e aos frutos do planeta?


Referência


SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda de Cidadania: a saída é pela porta. 3ª. Edição ampliada. São Paulo: Cortez: Fundação Perdeu Abraço, 2004.


Texto 2 



Fonte d a imagem: https://www.nationalarchives.giv.uk/documentos/education/poor-law.pdf 


Poor Law – 1834


     A assistência aos pobres financiada pelas camadas médias e altas através de impostos estava sendo questionada, considerada onerosa. Entre as críticas à tal assistência,   havia aquela que considerava que tal assistência contribuía para o ócio, para a preguiça. Essa movimentação social contribuiu para a Lei dos Pobres em Londres, em 1834.

  Pretendia-se reduzir os custos da assistência aos pobres e unificar o sistema no país. Essa lei prévia o agrupamento de paróquias em sindicatos, estes devendo construir uma casa de trabalho.

   Assim, com raras exceções, quem precisasse de assistência deveria ir para essas casas de trabalho que tinham um sistema considerado bastante rígido. Todos, independentemente da idade, tinham que trabalhar, seja em coleta de carvalhos, quebrando pedras, em minas, nas fábricas. 

     As pessoas que ficavam nas casas de trabalho tinham a liberdade cerceada, eram humilhadas, maltratadas fisicamente. Tais instituíções eram um verdadeiro presídio com trabalho forçado. A dieta era pobre, com relatos de oferta de comida estragada, inclusive. 

    A Lei dos Pobres tornou-se muito impopular, de forma que mesmo empobrecido, os trabalhadores a evitavam. E, assim, com o passar do tempo, as casas de trabalho tinha uma população constituída principalmente de velhos, doentes e órfãos.


Referência


A the National Archives. Disponível em https://www.nationalarchives.giv.uk/documentos/education/poor-law.pdf Acesso em 04 de mar. 2021.


Texto 3 




A visão de Engels sobre a Lei dos Pobres


    Alemão de família de industriais, Engels dedicou-se às causas da classe trabalhadora, escrevendo vários textos com Marx e organizando os últimos livros de O Capital após a morte do amigo. Já em 1844, inicia a elaboração de “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, concluído em 1845.

    Analisando as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels se depara com o trabalho de mulheres, inclusive gestantes, de crianças, com o processo de rebaixamento salarial e desemprego, que determinam as condições de moradia e de vida.

    Em análise de documentos do parlamento, Engels observou que a classe trabalhadora virava tema frequente nas discussões. Nessa oportunidade, pôde ler a lei sobre os pobres.

    Segundo Engels, a Poor Law surgiu em 1601, pela Rainha Elizabeth ou Isabel I. Tinha como princípio o socorro aos necessitados, o financiamento da assistência advindo de impostos e a responsabilidade das paróquias pela assistência, tanto de socorro quanto de trabalho. As casas de trabalho (workhouse) existiam desde 1697. Contudo, essa lei dos pobres sofre mudanças em 1834 e fica conhecida como Nova Lei dos Pobres.

   Havia críticas acerca das consequências sociais da lei: que criava obstáculos à indústria; que estimulava uniões ilícitas e o aumento da população; que protegia indolentes, viciados e irresponsáveis; que estimulava a preguiça; que explorava os contribuintes etc. 

     Muitos seguidores das ideias de Malthus defendiam que a pobreza era crime e deveria ser tratada com intimidação. Para eles, deveria se garantir a livre concorrência e que cada um cuide de si, desejando revogar as leis sobre os pobres. Não ousando tanto, propuseram uma nova lei. A nova lei afirmava o direito dos pobres existirem, contudo, apenas isso, existirem sem o direito à procriação. Para eles, pobres eram supérfluos, uma praga que se não poderia ser eliminada,  não mereciam viver em condições humanas.

    Essa Nova Lei dos Pobres foi aprovada pelo parlamento em 1834. Na nova versão, não havia mais subsídios em dinheiro ou im natura. A assistência se restringia ao acolhimento nas casa de trabalho. 

     A casa de trabalho foi constituída para dissuadir aqueles que pensassem em procurá-la. Eram locais repugnantes. A alimentação era da pior qualidade. Dificilmente havia carne e quando havia, nunca era fresca. O trabalho era obrigatório, penoso e quem não trabalhava, não comia. Não havia liberdade de ir e vir, não sem a permissão do diretor. Os assistidos pelas casas de trabalho não podiam receber doações, seja de amigos, parentes ou outros. Havia punições com flagelos físicos, inclusive em crianças. Para não concorrer com a indústria, o trabalho realizado naqueles abrigos era trabalho inútil: quebrar pedras, crianças e velhos desfilavam cordames de navios. As famílias eram separadas: homens para um lado, mulheres para outro e os filhos para outro.

    A Casa dos Pobres, chamada de “Bastilha da Lei dos Pobres”, assim falam sobre a Lei:

“Enquanto esteve em vigor a velha lei dos pobres, os trabalhadores recebiam alguma ajuda – o que fez, naturalmente, com que os salários caíssem ainda mais, reduzidos pelos proprietários rurais, que trataram de transferir para a Caixa dos Pobres o grosso da manutenção dos trabalhadores.” (Posição 3541)

   Engels se refere à Lei do Pobres como cruel e que levou a uma maior revolta do povo, bem como ao aumento da população de indigentes. A miséria crescia, aumentando a mendicância, o roubo. Foram descobertos abusos na administração dos fundos que deveriam financiar os benefícios previstos pela Lei dos Pobres. Todos os trabalhadores que viviam no campo eram muito pobres, dependentes da Caixa dos Pobres. 

     Contudo, Engels fala que a aplicação da lei era bem pior que a sua redação

    “O tratamento que a nova lei prescreve, na sua letra, contrasta abertamente com o espírito que a informa; se, em substância, a lei declara que os pobres são delinquentes, que as casas de trabalho são cárceres punitivos, que seus internados são foras da lei, objetos repugnantes postos fora da humanidade, não se pode aplicá-la de outra maneira. Na prática, portanto, o tratamento reservado aos pobres nas casas de trabalho obedece, não à letra, mas ao espírito da lei.” (Posição 3859).


Referência


ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. (Segundo as observações do autor e fontes autênticas). Tradução B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010.




    




segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin

 



Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin

 

Nesses tempos de pandemia, diante das praias, calçadas e bares lotados de pessoas que negam a gravidade da situação, a vida parece se desenvolver em realidades distintas, separadas, apartadas. Em um mundo, o planeta habitado por pessoas que se veem diante de um vírus letal e, por isso, buscam o isolamento e o distanciamento social e se preocupam com a higienização das mãos e com o uso de máscaras, visando dificultar a proliferação do vírus. O outro mundo está habitado por pessoas que não estão nem aí, adeptas do ditado “o que os olhos não veem, o coração não sente”, permanecendo na postura de Tomé de necessitar ver (sentir, doer e chorar) para crer. E só recorrendo a Gilberto Gil para passar por esse paradoxo.

“De um lado, esse Carnaval, de outro...

 E é nessa perspectiva paradoxal que se desenvolve a trama escrita por Ursula K. Le Guin. Trata-se de um livro de ficção construído de tal forma que nos leva à reflexão sobre os rumos da humanidade.

De cara, os nomes das personagens, das cidades, dos planetas nos causam estranhamento pois não nos remete à nenhuma associação com as personagens reais da história da humanidade. Contudo, no desenrolar da história... Mundos distintos na face aparente, mas como nos lembrou Marx, a realidade tem múltiplas faces e não se revela de imediato. É preciso ter olhos e instrumentos para enxergá-la.

E por falar de Marx, para quem leu o seu livro de mesmo título, Os Despossuídos, escrito em meados do Século XIX, poderá perceber que embora com abordagem completamente distintas, eles tratam sobre o mesmo objeto.

Marx reflete sobre a (des)posse quando trata da lei Renana que visou coibir a coleta de madeiras caídas nas florestas e que era realizada por parte da população que com o resultado da coleta não só abastecia a família com lenha para cozinhar e aquecer a casa, mas também com materiais para fabricar ferramentas e artesanatos e comercializá-los. Mas as florestas, antes de ser patrimônio público, é tratada pela lei como não podendo ter os seus frutos usufruídos por todos. E daí se discute sobre “os ladrões de madeiras e o direito dos pobres”. Olhando de perto, com instrumentos próprios, surge a questão: quem são os verdadeiros ladrões nessa relação.

Também partindo dessas duas perspectivas, proprietários e não proprietários, Le Guin desenvolve o seu texto. O direito à propriedade privada X o acesso comum aos recursos existentes como direito coletivo. Mas como nem tudo que reluz é ouro e embora se trate de ficção... o livro nos faz refletir sobre a nossa própria realidade.

Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total
Uo-o-o-o-o-o

 

Vale ler a complexidade da tal “novidade”.

Boa leitura!

Luzia M. Cardoso

 

Citação: Letra da música de Gilberto Gil, A Novidade.


quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trilogia de Nova York III: Quarto Fechado



Trilogia de Nova York III: Quarto Fechado


Junho do ano da Covid-19 e eu, uma brasileira que não desiste nunca, me mantendo nessa quarentena líquida, começo a ler o terceiro livro de Paul Auster.

Destelo tela a tela do Quarto Fechado enquanto uma outra  tela à minha frente noticia o número de contaminados, de mortos,  de subnotificações, subtestagens, modificação na metodologia de apresentação dos dados epidemiológicos...

Os mortos saltam das covas e  gritam que são muito mais de trinta mil neste três de junho e   correm pelas ruas arrastando sombras.

Mortos nos hospitais, nas portas de emergências, no caminho, nas residências, nos contêineres, nos cemitérios...

Corpos estirados, gelados, inertes... Corpos de seres dos quartos fechados. Será que há seres mortos dos quartos fechados?

Penso que todos nós somos seres dos quartos fechados, com armários com portas ranhetas a reclamar  do mofo, das traças, dos cupins, da poeira... Cruéis, nos apontam todos os nossos rasgos de caráter a embaçar  o espelho...

Parece que ouço um zunido daí... Já  ouço uns mimimis...  Estão a retrucar, com um grito mudo: - Eu, não! Eu deixo a porta sempre aberta!

De cá, me resta rir. Sim, rir. Penso que somos todos seres dos quartos fechados. Alguns mantém a porta do quarto fechada, mas a atravessa, ocasionalmente.  Outros, após levarem tudo para detrás do armário, até se permitem abri-lo.

Há ainda os que, fechados, perdem a chave da porta de seu próprio quarto. Já aqueles que perdem a chave da porta quando do lado de fora, precisarão arrombá-la ou contratar um chaveiro. Estes, ao retornarem ao interior de seus quartos, talvez, não mais o reconhecerão ou, talvez, mudem de quarto ou se percam pela sala.

Sempre me preocupo com um outro grupo dos quartos fechados: aquele que não providencia uma porta...

Agora, uma parte reveladora dos quartos fechados é a janela: vidraças, toldos,  cortinas...

Cá, com o laçarote de meu pijama, volto a espiar o meu próprio quarto. Prudente, olho pela fechadura.

É incrível quanto que a fechadura de um quarto fechado pode revelar. E a fechadura, tagarela, sai mostrando tudo, havendo ou não uma chave atravessada do lado de dentro; havendo ou não trecos pendurados na maçaneta.

Pois é, somos, todos, seres dos quartos fechados. Volta e meia, alguns de nós deixamos cair chaves pelo caminho.    Há os que, após perde-las, se perdem a procurá-las;  há  os que não as procuram jamais; e  há aqueles que, encontrando chaves alheias, acreditam que abrirão as portas de seus próprios quartos.

E há um outro grupo que destaco e o apresento agora, pois, dele,  devemos nos atentar:  o dos quartos fechados que furtam as chaves dos outros.

Convivi com todos esses seres dos quartos fechados e também já tive momentos diversos...

Hoje, percebo que estamos diante daqueles dos quartos fechados a sete chaves e que estão a nos propor quarentenar com as nossas portas abertas? Há, inclusive,  manifestações dos quartos trancados, reivindicando chaves alheias, onde,  os mais trancados exigem o sequestro de nossas portas.

Tempos líquidos, quartos líquidos, portas líquidas, chaves líquidas... Experiências líquidas dos quartos fechados.

Luzia M. Cardoso

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Desencontro com Bial



Desencontro com Bial

Pandemia, funerais sem despedidas. Covas rasas alinhadas lado a lado. Valas e mais valas... Brasil de vinte e nove de maio de dois mil e vinte.

Um ano redondo, dois mil e vinte. Vinte e vinte, duplo vinte. Dois mais dois igual a quatro. Ano quatro na numerologia.

Que lições nos trazem os anos quatro? Mil setecentos e oitenta e nove foi um ano sete; mil novecentos e dezessete foi um ano nove; mil, novecentos e sessenta e quatro foi  dois; mil, novecentos e sessenta e oito, seis; dois mil e um,  três... Talvez a numerologia prefira silenciar.

Dois mil e vinte e milhares de mortos invisíveis para os que não querem ouvir. Mesmo assim,  chegamos à marca de vinte e seis mil, setecentos e oitenta e oito mortes. Hoje, na manhã de vinte e oito... Tantos oitos sugerirão alguma coisa? O número oito desenhado deitado, na horizontal, é o símbolo do infinito!? Prefiro não pensar.

Na contagem dos mortos, tiram de cá, empurram para lá e há quem se diga da fé que resolve afirmar que o vírus foi controlado. Esqueceram de combinar com o vírus, já que a linha do gráfico não dê sinais de que pretende descer.

Em relação aos métodos de controle brasileiros e o vírus, repetimos o placar da última Copa do Mundo no jogo com a Alemanha: sete a um para ela. 

Na numerologia, sete mais um é igual a oito. Novamente o oito! No ranking mundial da Covid-19, atingimos o topo, somos o novo epicentro.

Enquanto isso, hospitais de campanha ainda no papel, apesar das datas previstas nos contratos.  Governos de estado e municípios apresentando e executando planos de flexibilização da quarentena brasílis.  Havendo, ainda,  quem tenha decretado serem os templos religiosos serviços essenciais, autorizando a sua reabertura cultos.


"Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade."
Timóteo 2:1-2

O Poder da Escrita... Vale o escrito, a máxima do jogo do bicho lembrada por Pedro Bial em um de seus vídeos da web série de dez módulos vendido a mais de setecentos reais, com juros bancários nos parcelamentos.

Empresários nos levando a crer em sua solidariedade ao povo nos tempos de pandemia. E a tal web série foi ofertada a valor "promocional" de cinquenta por cento, também com juros bancários nos parcelamentos.

Em casa, tentando garantir o isolamento social, angustiada com a linha do gráfico da Covid-19 e cansada da rotina do trancamento, me inscrevi nas séries gratuitas. Vivenciei motivações e provocações interessantes enquanto isso, motivações e provocações, embora  a mercadoria não seja assim apresentada.  A web série se propõe a ofertar aulas com o objetivo de levar a escrever melhor.

A palavra aulas adquire nova conotação, nos tempos de hoje. A interação entre quem se propõe a ensinar e quem se propõe a aprender foi suprimida. Não mais uma linha de mão dupla. Agora, quem quer ensinar grava e quem quer aprender assiste. Tempos de modernos, uau!

Fico a pensar também sobre o que querem dizer com "escrever melhor", visto que não incluíram, entre os tópicos a serem desenvolvidos, nem regras gramaticais e de pontuação e nem técnica de redação.

Já inscrita e participando dos módulos gratuitos me vi diante dos exercícios propostos e... Ri. Os exercícios arrepiam qualquer professor atento aos métodos pedagógicos e à didática. 

Os exercícios deveriam ser compartilhados no grupo de Wathsapp. Os moderadores propunham a sua discussão no grupo, mas tal não ocorria. Na interação no grupo, os assuntos sempre tangenciavam.

Vejamos o porquê do tangenciamento. Apresento dois exercícios solicitados no segundo dia para que possamos pensar sobre o tempo necessário para a sua execução e o sentimento dos inscritos frente a eles:

- Identificar as possíveis relações entre o romance Adous Huxley, Admirável Mundo Novo, com a atualidade;

- Analisar Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski e Dom Casmurro, de Machado de Assis e elaborar uma história onde o enredo trate da influência da sociedade sobre o individuo, enfatizando o julgamento da sociedade.

Quase uma tese de conclusão de curso! A médio e longo prazos, uma boa proposta, mas para curto prazo, para o debate do dia seguinte, impossível, frustante. Daí o tangenciamento.

A participação no grupo de Wathsapp, no início, criava a sensação e a expectativa de proximidade com o famoso. Algo que não ocorreu. Os videos postados pelos moderadores foram pré-gravados. Haveria, no entanto, a ocorrência de uma live no terceiro dia.

Sobre esse terceiro dia cabe destacar: o dia da live com Pedro Bial. Uau!

Nesse dia houve muitas chamadas no grupo e em nossos e-mails, criando  uma grande expectativa. Mais de mil pessoas aguardando online. Anunciada para as dezenove horas, aconteceu mais de meia hora depois.

E eu me imaginava, enquanto professora, chegando em sala de aula mais de quarenta minutos da hora prevista para o início de minha aula. Uau!

Aluna ávida por conhecimentos, esperava que nessa live fosse apresentado o conteúdo do terceiro módulo.  Que frustração!

No transcorrer do dia, antes da live, quando abriram o grupo, não houve textos em PDF e, tampouco, os videos gravados por Bial.

Nos dois dias anteriores, havia um texto de cerca de onze páginas e dois vídeos gravados pelo jornalista: um apresentando o conteúdo do módulo e outro curto, fechando o dia.

O terceiro módulo se restringiu à live onde, nos primeiros minutos, Bial falou sobre a relação dele com a escrita, sobre a importância da leitura, sobre a sua falta de tempo de fazer prefácios de livros de terceiro. Em seguida, sugeriu que quem quisesse escrever sempre cortasse pela metade o que já havia escrito. "Corte!"

Depois, ficou a responder algumas perguntas a ele entregues pela administração e que não acrescentavam nada de relevante conteúdo do dia. Por fim, Pedro Bial dedicou o restante do tempo para vender o seu "curso", concluindo que estava valendo menos do que dois reais. Uau! 

O jornalista só não explicitou que são quase dois reais diários em dose meses e que multiplicados por cem inscritos daria um valor de hora aula nunca alcançável por um professor.

Talvez o que falte ao professor seja a fama, a possibilidade de, com sua imagem, vender mercadorias. A imagem do famoso vale mais do que o conhecimento e o método, enquanto o professor vivência a desvalorização do saber e da arte de ensinar.

A imagem vale mais do que mil palavras, já que todo escrito, nos tempos de hoje, é revisado e alterado. O escrito perdeu valor e a arte de ensinar se confunde com a técnica de coaching. A hora de um coach famoso vale muito mais que a hora aula de um professor de anos de estudos, prática no magistério e horas debruçado em métodos pedagógicos, elaboração de textos, aulas e exercícios a serem apresentados aos alunos.

Será que bastam motivações e provocações para levar alguém a escrever bem?

" Por isso, pela graça que me foi dada digo a todos vocês: Ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas, ao contrário, tenha um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus lhe concedeu."
Romanos 12:3


Nesses nossos tempos atuais onde um capitão da reserva interfere em protocolos médicos para tratamento de doenças, engenheiro-pastor dá pitacos em metodologias de apresentação de dados epidemiológicos, um jornalista se sentir professor está dentro do contexto.

Luzia M. Cardoso




terça-feira, 26 de maio de 2020

Confinadas Leituras II A Trilogia de Nova York - Fantasmas


Confinadas Leituras II
A Trilogia de Nova York - Fantasmas

Despertamos com uma granada furtivamente colocada no bolso de nossos jalecos brancos, de nossas camisas, de nossas jaquetas, calças compridas... 

Passaríamos, no mínimo, dois anos carregando esse explosivo nos nossos bolsos e que já fora programado para detonar. Parece não haver saída e, sobre o fato,  nós tomávamos conhecimento nesta última quinzena de maio.

Um maio de epidemias, não só viral, mas também moral. Tudo fora contaminado em grande escala. Não diria que em grande velocidade. Não para a imoralidade e amoralidade que a toda sociedade vitimavam.

Não. Se o coronavírus rodou o planeta e dizimou milhões de pessoas ceifando nos continentes, a simbiose da amoralidade e imoralidade instalada no Brasil foi se desenvolvendo durante séculos. Feito a bactéria de fermento na massa de pão que, acomodada, vai se expandindo, crescendo para todas as direções.

Sobre o meu sofá grená, frente a telas planas, assisto a aquarela se dissolvendo. Parece não haver mais limites entre as cores. Como se não houvessem mais lentes corretoras para astigmatismos e daltonismo.  Tudo se apresentava sendo um imenso borrão cinza-marrom-lama.

A sensação era a de estar vivendo dentro das telas de Salvador Dali. Não pelas cores, mas pelas experiências propostas.

Nada mais era sólido, firme, certo, definido.  A vida era como a memória de alguém acometido por Alzheimer: a curta não persistia e, as passadas, há tempos estavam derretendo.

Em plano alto, tudo apontava para uma grande mão em seu ir e vir frenético, à frente e atrás, frente e a frente e atrás... Nos horários de penúmbra, espalmando-se.

Insisto em desfolhar o livro de Paul Auster, agora, no segundo livro de sua trilogia.

Não sei mais se desfolhar seja a palavra ideal para descrever o ato de passar as páginas nos meios digitais. Talvez, estejamos destelando os livros...

Agora não mais nos debruçamos sobre folhas de papel, mas  sobre janelas. Passamos o tempo   espiando as janelas, de frente para as cenas iluminadas e de costas para dentro de nossos próprios aposentos. Observamos os fatos de costas para nós.

Vivemos em realidade paralela? Caímos num sono profundo e coletivo?

Estamos acoplados em algum pesadelo qualquer onde espectros elevam o tom, dia a dia...

Penso não ser um mero acaso que, nesse exato momento, eu esteja abrindo janelas e alinhando o meu binóculo para as que estão à minha frente. Não parece ser apenas uma coincidência eu  querer decifrar fantasmas.

Luzia M. Cardoso